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Na
cidade de Sertânia, onde moravam, o caboclo Benedito Rodrigues de
Morais e sua mulher Laudelina Vaz de Morais tinham escutado falar
que num ponto perdido do planalto começavam a construir uma cidade.
E que essa cidade viria a ser a nova Capital do Brasil. Juntaram
os muitos filhos e os poucos tarecos que possuíam, subiram à carroceria
do primeiro caminhão que partiu e se foram. Durante dias sacolejaram
na estrada poeirenta, fustigados pelo sol. Ao cair da tarde daquele
5 de dezembro de 1956 o caminhão parou à beira de um córrego. Haviam
chegado. Desceram Benedito, Laudelina e seus treze filhos. Laudelina
esperava o 14°. Mas era mulher animosa e sentia que o futuro colocara-se
ao alcance de suas mãos.
Dinheiro não tinham, é certo, nem para comprar a lona de uma pequena
barraca. Mas Deus haveria de prover a tudo. O chão de mato ralo
foi alimpado às pressas, que a noite vinha caindo. E o pano de mescla
armado à moda de um abrigo. Aí se instalaram para dormir. Para dormir
e para viver a vida.
Na manhã seguinte, antes de sair à procura de trabalho, Benedito,
com seu facão de mato, ampliou a limpeza em volta da barraca. O
lugar era aprazível, suave encosta entre dois pequenos rios que
mais tarde veio a saber se chamavam Riacho Fundo e Ribeirão Vicente
Pires.
A barraca de mescla do caboclo foi a primeira “habitação” no local
que a Novacap (Companhia Urbanizadora da Nova Capital Federal) haveria
de escolher, logo depois, para a instalação de uma cidade provisória
onde se abrigariam os operários e se estabeleceriam o comércio de
apoio, oficinas, pequenas indústrias. Três largas avenidas foram
rasgadas e algumas ruas transversais abertas. As construções teriam
que ser de madeira pois, inaugurada Brasília, a cidade provisória
se extinguiria. Todos os que ali buscavam se estabelecer sabiam
disso.
A distribuição dos lotes era feita pela Novacap através de documento
claro e explícito a esse respeito. O “núcleo bandeirante” ou “núcleo
pioneiro”, como passou a ser conhecido aquele aglomerado de toscas
construções, teria que desaparecer tão logo a capital oferecesse
condições para a instalação definitiva da população prevista no
programa do seu desenvolvimento.
Na verdade ninguém, desses pioneiros, acreditava na demolição da
Cidade Provisória, que foi crescendo. No início, crescia devagar.
Depois, de forma acelerada. Em 15 de fevereiro de 1957 funcionavam
já duas pequenas padarias, um açougue, dois modestos hotéis, um
bar, duas lojas-armazéns. Era “o comércio” da nova Capital, cujo
funcionamento se processava livre de qualquer alvará, sem pagamento
de tributos e sem limitação de horário. Nasceu daí a denominação,
que mais pegou, de “Cidade Livre”.
À medida que as obras de construção da nova capital tomavam corpo
e se definiam não como um sonho impossível mas como realidade que
trazia em si mesma a semente do sucesso, as mais importantes firmas
do país passaram a instalar na Cidade Livre sucursais, juntando-se
às carpintarias, farmácias, pensões, agências bancárias, empresas
de transporte, cinemas, lojas de roupas, mercearias e restaurantes
que brotavam, como por milagre, da noite para o dia.
No começo de 1958 aquele núcleo pioneiro, que nascera com a barraca
do caboclo Benedito e um ano antes se restringia a um incipiente
“comércio” de sete ou oito “negócios”, lembrava bem uma cidade do
faroeste americano dos tempos da corrida do ouro, “modernizada”,
com milhares de moradores fervilhando febrilmente, um comércio ativíssimo
de todo gênero e que praticamente não fechava, centenas de caminhões,
jipes e utilitários circulando por suas ruas poeirentas, de cujos
postes pendiam estridentes alto-falantes jorrando música nordestina,
anúncios, notícias do Brasil e do mundo e os últimos sucessos dos
cantores populares.
Num dia quente de março daquele ano, Israel Pinheiro, presidente
da Novacap, resolveu dar um giro por lá. Descendo do Catetinho pela
estrada velha que ia sair na ponte do Riacho Fundo, limite oeste
da Cidade Livre, atravessou o córrego.
À direita notava-se o aterro da estrada de ferro, que se levantava.
Na margem do riacho uma indústria de blocos de concreto. Logo adiante,
à esquerda, numa posição dominante, o "Hotel Brasília" , primeiro
da nova capital. Seu proprietário o construíra ali certo de que
estava na "entrada do alçapão" e apanharia todos que chegassem vindos
de Anápolis, de Minas, de qualquer direção.
Não contava que a pista de pouso definitiva ficasse pronta tão depressa
e que os aviões concentrassem logo o transporte da quase totalidade
dos visitantes que chegavam e que alcançavam a Cidade Provisória
pela extremidade oposta, utilizando uma estrada especialmente aberta
para isso, muito melhor que a antiga. Por outro lado, a rodovia
nova de Anápolis fora jogada mais para leste, passando pelo outro
lado da cidade, bem distante do “Hotel Brasília” que ficou, assim,
perdido, isolado na velha ponte.
E outros hotéis surgiram, mais centrais e melhores. O “Copacabana
Palace” era o “Santos Dumont”, de três pavimentos, que custou na
época uma pequena fortuna. O jipe parou diante desse hotel e Israel
Pinheiro entrou no seu restaurante. Sentadas no saguão, viu algumas
senhoras imaculadamente limpas.
Não estranhem a observação, pois durante os anos de construção de
Brasília uma poeira fina, sépia, cobria permanentemente tudo, entrava
pelas narinas das pessoas, ressecava a pele do rosto, crestava os
lábios, sujava todas as roupas, invadia todas as casas. Não era
a poeira da inércia, da falta de vassoura e de cuidados.
Ao contrário, era o pó resultante do excesso de máquinas e do trabalho
diuturno de centenas de caminhões. Quem não fosse operário de obra
usava banhar-se e trocar de camisa até três vezes ao dia. A poeira
tornou-se, inclusive, objeto de curioso comércio: enchiam-se com
ela miniaturas de garrafas de vidro com rótulos coloridos onde se
lia “Souvenir: Poeira de Brasília” e vendiam-se as garrafinhas aos
milhares. Certamente a poeira de Brasília estará hoje guardada por
colecionadores nos quatro cantos do mundo.
O restaurante do “Hotel Santos Dumont”, muito bem montado, acolhia
em suas mesas, naquela tarde de soalheira, senhores bem postos e
bem barbeados, vestindo camisa esporte branca, a desfrutar da sombra
acolhedora do salão. Falavam de negócios. Na verdade, em todos os
lugares da cidade o clima era de trabalho e uma única preocupação
dominava todas as consciências: o andamento das obras da nova capital,
que se alteavam em aço e concreto na paisagem do planalto. Mesmo
ali, na tranqüilidade do salão povoado de música em surdina, oásis
de sombra e recolhimento na tarde quente, onde ninguém falava alto
nem se excedia em gestos e reclamações, a conversa era só de negócios.
Ocorreu a Israel Pinheiro de repente que aqueles cavalheiros pareciam
estar apenas aguardando que o sol abrandasse para se alçarem às
corcovas oscilantes dos camelos, no giro vespertino de inspeção...
O calor da tarde, as roupas claras dos homens, sua postura “britânica”,
provavelmente foram os responsáveis por aquele despropositado pensamento,
que logo se desfez ante a realidade do pequeno jornaleiro apregoando,
na janela, jornais do Rio. Era a notícia que chegava ali, na terra
onde só se trabalhava.
Saindo do "Hotel Santos Dumont", Israel de novo se viu na avenida
central, três quilômetros de casas de madeira, comércio na frente,
moradia nos fundos. Em filas duplas de cada lado da avenida, centenas
de caminhões, de aluguel e particulares. Ao longo de toda a avenida
de 40 metros de largura, milhares de pessoas se agitavam, se moviam.
Na maioria eram homens, poucas mulheres.
Todos vestidos com os trajes simples de brim que caracterizavam
o candango, construtor de Brasília. Se alguém aparecia com roupa
melhor, logo se sabia que era um novato. O candango, queimado de
sol, transpirando saúde e força, molhado de suor e tisnado de poeira,
não parava e estava sempre alegre. Curioso é que havia poucos negros,
pouquíssimos.
Todo mundo trabalhava. Das seis e meia da manhã às dez da noite,
inclusive aos domingos, feriados e dias santificados.
Em algumas circunstâncias muitos trabalhavam a noite toda. Quase
não chegavam, as 24 horas do dia, para tudo que tinha de ser feito.
Ler despreocupadamente um jornal, ouvir rádio, era praticamente
impossível, não sobrava tempo. As notícias chegavam através do serviço
de alto-falantes “Voz de Brasília”, “emissora oficial”, por assim
dizer, do Núcleo Bandeirante, na nova capital. E que deu origem
ao semanário “A Hora de Brasília”, primeiro jornal da cidade.
O jipe alcançou o setor em que os Bancos haviam se agrupado. Eram
já cinco agências. Todas lotadas. O Banco de Crédito Real de Minas
Gerais ostentava na fachada, orgulhosamente, sua tabuleta: “Primeira
Agência Bancária da Nova Capital”. E havia ainda o Banco do Brasil,
o Banco da Lavoura de Minas Gerais, o Banco Real Brasileiro e o
Banco Nacional de Minas Gerais. Com um movimento colossal de depósitos,
cobranças e empréstimos. Na realidade em apenas um ano a Cidade
Livre se transformara na mais forte praça bancária de Goiás.
A Cidade Provisória nascera de um impasse. Ao iniciar os trabalhos
no Planalto, construindo seus acampamentos em novembro de 1956,
defrontou-se a Novacap com um sério problema: montar e explorar
ela própria grandes armazéns sortidos de tudo, onde pudessem se
abastecer os empreiteiros de obras e os candangos que vinham chegando
aos milhares, ou deixar à iniciativa particular a tarefa de criar
o comércio de apoio à nova capital. Foi preferida a segunda alternativa.
E a afluência de comerciantes, de hoteleiros e pequenos industriais,
alcançou tal volume que em maio de 1957, quatro meses após a entrega
dos primeiros lotes no local, já a Novacap proibia novas construções,
deixando de atender a 1.200 requerimentos de pessoas e firmas que
ainda queriam lá se estabelecer.
A suspensão da distribuição de lotes na Cidade Livre e a firmeza
com que a Novacap se posicionou contra novas edificações ali, provocaram,
meses mais tarde, uma invasão desordenada para os lados do Ribeirão
Vicente Pires, defronte do Núcleo Bandeirante, do outro lado da
rodovia Brasília-Anápolis, surgindo assim a primeira favela.
Essa invasão cresceu rapidamente, de forma incontrolável, obrigando
a Novacap a acelerar os estudos e as providências para implantação
da primeira das cidades-satélites, previstas exatamente, por Lúcio
Costa, para evitar a formação de favelas na área do futuro Distrito
Federal. Em apenas três dias o Eng° José Maciel de Paiva elaborou
a Planta dessa cidade satélite. Bernardo Sayão lhe deu o nome de
Taguatinga, ave branca. Taguatinga oficialmente nasceu a 5 de julho
de 1958.
Deixando para trás o setor de Bancos o jipe alcançou a "rodoviária".
Dezenas de ônibus chegavam e partiam a todo momento, ligando Brasília
não apenas às localidades vizinhas mas aos pontos mais distantes
do país. Era um formigueiro humano. E havia também os ônibus “circulares”,
que percorriam constantemente as três longas avenidas da Cidade
Livre, movimentadíssimas e ocupadas, em toda sua extensão, por casas
comerciais, hotéis, pequenas indústrias, postos de gasolina, salões
de beleza, churrascarias, agências de Companhias de Aviação, postos
dos vários Institutos de Previdência, etc.
Alguns ônibus faziam a linha do Aeroporto, indo e vindo.
Israel retornou pela Terceira Avenida, onde a agitação era um pouco
menor. Estava impressionado com o que vira e revigorado em sua fé
no êxito da colossal tarefa. À direita avistou a igreja de D. Bosco,
padroeiro da Cidade Livre. Ao lado da fabulosa ação material que
ali no Núcleo se desenvolvia, caminhava em paralelo à ação espiritual.
No início Brasília subordinava-se, canonicamente, à Arquidiocese
de Goiânia. O primeiro sacerdote a chegar para o trabalho pastoral
fora Pe. Primo Scussolino, nascido na Itália, da congregação Estigmatina.
Era vigário, então, de Luziânia, já encanecido no santo ministério,
grandes olhos azuis numa face marcada mas sempre sorridente, a batina
surrada e cheia de poeira. Levava sua palavra de alento e de estímulo
a todos os candangos, levantando na cidade dos homens a cidade de
Deus.
Em sua vida de pobreza e de bondade, alegrava-se com as realizações
daqueles rudes obreiros, invasores das paragens tranqüilas do vasto
sertão, sua casa. Não viveu para ver a cidade pronta. Dois anos
após iniciada a luta, Pe. Primo morreu.
Quando o trabalho pastoral cresceu acima de suas forças, Pe. Primo
pediu ao Arcebispo que mandasse mais gente. E vieram os Salesianos.
Ficaram com a Paróquia do Núcleo Bandeirante, entregue a um capixaba
destemido e trabalhador, Pe. Roque (Roque Vagliati Baptista). Incumbiu-se
Padre Primo da Paróquia de Nossa Senhora Aparecida, localizada no
Plano Piloto.
Aquela pequena igreja de madeira, por cuja frente o jipe passava
agora, fora construída com a ajuda da Novacap. Mas a energia e a
determinação de Pe. Roque é que realmente a levantaram. Era ele
um sacerdote talhado para levar a palavra de Deus àquela cidade
que nascia às pressas. Muitas vezes foi o carpinteiro, o pedreiro,
o pintor da igreja paroquial. Ele foi tudo. Até mesmo, no devido
tempo, o organista das missas dominicais. Logo os candangos se entusiasmaram
com o novo Padre. Gostavam do seu jeito descontraído e simples,
dos seus sermões na linguagem deles, fácil de entender.
E da sua disposição para o trabalho, com qualquer tempo, a qualquer
hora. Enquanto construía sua igreja Pe. Roque dizia suas missas
no cinema... Aos domingos, pela manhã, ocupava o grande galpão e
celebrava três missas, em horários espaçados. Depois que a igreja
ficou pronta, Pe. Roque fundou ao lado uma Escola Paroquial, a que
deu o nome de Nossa Senhora de Fátima.
Também os protestantes construíram seus templos na Cidade Livre,
em número de quatro, grandes e relativamente suntuosos. Antes de
encerrar seu giro, Israel pôde ver os Grupos Escolares repletos,
o Colégio D. Bosco, dos salesianos, que funcionava em dois turnos,
com o 1° e 2° ciclos, e o Ginásio Fundação Brasília, também em pleno
funcionamento.
Interessante é que embora a Novacap desestimulasse a vinda das famílias
dos operários, em razão da precariedade das acomodações em que viviam,
no Natal de 1957 Dona Coracy, mulher de Israel, ao distribuir brinquedos
às crianças pobres com menos de 12 anos, numa iniciativa das Pioneiras
Sociais, que ela presidia em Brasília, atendeu a 1.680 crianças.
À noite, a Cidade Livre assumia o aspecto dos grandes centros. Não
havia iluminação pública, é verdade, mas todos possuíam seus geradores
próprios e as casas se iluminavam, luzindo na noite escura as cores
vivas do neon de seus letreiros.
Juscelino visitou a Cidade Provisória pela primeira vez no dia 4
de abril de 1957 e pôde constatar que ali nascia e se formava um
poderoso núcleo de apoio às obras da nova capital, que apenas começavam.
Em dezembro de 1957, no dia 14, Brasília e a Cidade Livre enfrentaram
uma tempestade arrasadora, a primeira assim desde que se iniciara
a construção da nova capital. Tudo começou no final da tarde, por
volta das cinco horas. Duas cortinas d'água, pesadas, escuras, cortadas
de relâmpagos e precedidas de trovões e vento forte, caminhando
de pontos opostos do horizonte, encontraram-se exatamente sobre
a região de Brasília. O céu escureceu de repente e um dilúvio, como
nunca se vira antes, desabou. Durante duas horas foi o fim do mundo.
Quando tudo finalmente serenou, os danos, aos poucos, puderam ser
levantados. Todo o serviço parara. As águas do Vicente Pires cobriam
a ponte que ligava a Cidade Livre ao Plano Piloto; as estradas tornaram-se
intransitáveis, os terraplenos lamaçais; imobilizaram-se todas as
máquinas e caminhões; as escavações para os alicerces e garagens
dos edifícios viraram lagoas profundas; rodou a barragem do Ipê,
afluente do Riacho Fundo; e foi destruído o Castelo d'Água da Usina
Piloto de Saia Velha, que se construía para fornecer energia elétrica
ao Catetinho, ao Aeroporto e às instalações da Novacap — escritórios,
oficinas, serraria, olaria, residências.
O temporal deixou a advertência de que um novo obstáculo devia ser
superado na corrida contra o tempo: a estação das chuvas, que no
Planalto começa em outubro, atinge sua maior intensidade nos meses
de dezembro e janeiro e se prolonga até março. Seis meses durante
os quais os trabalhos de construção perdem seu ritmo, retardam seu
andamento, as olarias diminuem de produção, tirar areia dos rios
fica difícil, o transporte de materiais se delonga, os resultados
não condizem com a luta para alcança-los.
A tempestade de dezembro passara. Outra maior desabaria algum tempo
depois: a dos moradores do Núcleo Bandeirante quando a hora chegou
de demolir sua cidade, conforme estava previsto e eles sabiam.
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